Cântico






 ( homenagem a José Régio )




nasci
quando o fruto se abriu em semente
quando a noite rasgou o ventre de minha mãe
.trazia
o vagido fechado das primeiras pancadas
os pés abertos no cordão que me cortaram
.contei
cada segundo que passava do acto em que nasci
                               ( como se adivinhasse que
                               correriam sobre os meus olhos
                               pisariam os meus ossos ou
                               cuspiriam a minha carne crua )
.corri
pendurada nas hastes do tempo
pelos lagos da minha infância
.suguei o tutano viscoso das palavras
o sentido da REVOLTA e
guardei
as minhas ambições nas prateleiras
duma biblioteca quadrada
.assisti
à dança macabra das freiras
enfeitadas com colares de espanto
.saí
de mim
dos compêndios riscados com borronas
das sebentas bentas pelos lentes e
vomitei
de nojo
.corri
as ruas duma cidade infecta
desfraldei
bandeiras rubras de sangue
soltei
temporais de vento norte
descobri
o amor mecânico das prostitutas
abri
os olhos no sono dos homossexuais
pisei
as mãos dos mortos
amei
com os dedos carregados de ternura
precisei
um mundo de beleza e
senti
no corpo
o gosto acre da derrota
.descansei os meus olhos sem lágrimas
devorei
livros ,teorias ,ensaios e filmes
vivi
as guerras ,as bombas de napalm
percorri
os caminhos de Mao a Ho-Chi-Min
embosquei
a raiva na morte de Che Guevara
alvorocei
cidades condenadas
ensinei
crianças famintas de cultura e fome
senti
a calúnia tomar forma de mulher

então vi
meu corpo caminhar sem medo
minha boca falar por si
minha razão tomar razão
meus pés andarem sem bengalas e
meus braços sem muletas

despi-me
rindo com todos os dentes
no pudor dos enterrados precoces e
FIZ-ME






lili roze